LATA D’ÁGUA NA CABEÇA*

A colunista do Literatuando Fabiani Taylor traz aqui a sua deliciosa crônica, uma vez que a edição impressa está suspensa

A névoa ainda cobria toda a cidade quando minha avó e minhas tias colocavam a tina na cabeça e seguiam o mesmo caminho que há anos trilhavam para pegar a mais límpida água.
Vestiam suas roupas do mais grosso pano, surradas com a economia da vida, e saíam madrugada afora em busca do líquido precioso para matar a sede e cozinhar a precária comida para toda a família.
Passos calosos pisavam na mais barrenta poeira que o destino traçava a cada avançar para a velha cacimba, poço dos milagres da pequena vila de pescadores. E lá iam as mulheres, compassadas com o andar do sol, não havia brecha para o desperdício, era preciso equilibrar a lata, nenhuma gota poderia cair no chão de terra batida, nenhuma mulher poderia se atrasar para os afazeres domésticos, o tempo era precioso, e a lata d’água na cabeça apertava tanto o crânio, que amassava os mais coloridos sonhos da infância.
Os passos ficavam marcados, como se na vida das mulheres fossem um lembrete de que amanhã seria outro dia, um mesmo dia. Assim, deixavam para trás a mocidade cheia de esperanças, que escorreu goela abaixo, juntamente com a água fresca da idade vindoura.
Havia também o momento de limpar a sujeira das velhas vestimentas, não com a água da cacimba, mas no rio cristalino que brilhava com o resplendor do sol. O sabão em pedra era chacoalhado na roupa do dia a dia, era preciso quará-la, deixando um singelo perfume de aurora e lavando a lama da vida, escorrendo a sujeira pelas linhas das mãos, vazando entre os dedos, indo embora com a correnteza que corria faceira em busca de um novo horizonte.
Chegara a hora do banho, e no rio reluzente de minha memória, banhavam-se as mulheres de meu sangue, mergulhavam bem fundo no friozinho do entardecer, tirando a carcaça da infância, e emergiam mulheres guerreiras, caminhando na escuridão.
É uma pena que, debaixo da ponte, nunca mais correrá a mesma água.
(Fabiani Taylor)
*Crônica publicada no Jornal Espírito Santo Notícias, em seguida, no livro O Badalador de Sinos e Outras Crônicas.
Foto: Instituto Histórico e Geográfico de Piúma, disponível em https://ihgpiuma.wixsite.com/inicial?lightbox=image5qr

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