Sobreviventes do naufrágio contam detalhes da tragédia

Três famílias de luto na comunidade do Gomes, em Itapemirim, três jovens pescadores não suportam o frio, o cansaço, a fome e morrem em alto-mar, após a embarcação Kairos naufragar

Os três jovens pescadores não resistiram o cansaço e morreram no naufrágio da embarcação Kairós

Os jovens pescadores, Cleidson Marvila, 19 anos, Wanderson Batista Gomes, 18 anos e Pablo dos Santos Amaral Gomes, 22 anos estavam na embarcação Kairós, que naufragou no mar na madrugada desta quarta 26, a cerca de 150 milhas da costa. Eles morreram após não mais suportarem o cansaço, o frio, a fome, a sede, a hipotermia. Morreram ao lado dos três companheiros que lutaram contra suas próprias forças e conseguiram se manter vivos em alto mar depois de mais de 15 horas de naufrágio sob uma bobina.

A tripulação

O barco saiu do Porto de Itaipava na última terça-feira (25), com seis tripulantes a bordo, identificados como: mestre Marcielio de Souza da Rocha, o Marcinho, 34 anos, o irmão, Jacielio de Souza da Rocha, 36 anos e Edmilson Schlulikebier Veiga, 54 anos, os jovens: Cleidson Marvila, 19 anos, Wanderson Batista Gomes, 18 anos, Pablo de Souza Amaral, 22 anos, residentes na comunidade do Gomes em Itapemirim. Eles estavam trabalhando na localidade da bacia de Campos, no estado do Rio de Janeiro.

Os jovens deixam suas famílias numa partida muito triste, após não mais suportar o cansaço. Morreram de hipotermia, pelo que tudo indica e acreditarem seus companheiros.

História triste

Uma história triste de ser contada. Os três sobreviventes relataram a tragédia que ceifou a vida dos meninos. Ainda no Hospital Menino Jesus em Itaipava, na manhã desta quinta-feira, o mestre da embarcação contou como conseguiram se salvar, a bordo da embarcação Lavínia II que os encontrou boiando por volta das 12h30, já no limite de suas forças. Os heróis sobreviventes tentaram manter a paciência, lançaram mão da experiência com a dura vida no mar. Um baleal fez a escolta dos sobreviventes para evitar a chegada dos tubarões mais perto, ou seja, muitas baleias nadaram ao redor dos tripulantes durante mais de 15 horas evitando que cações gigantes os atacassem.

Contou Jacielio que em um dado momento, avistou um objeto no mar e saiu nadando na direção, era uma bolsa, próximo um pacote de biscoito recheado, encharcado de água, ele não pensou duas vezes, espremeu e comeu a massa do biscoito com toda voracidade, a fome era muito grande. Macarrão sobreviveu por conta de uma mochila agarrada em suas costas, foi nela que debruçou a cabeça durante as horas de agonia. Já não mais sentindo a língua se lembrou de um leite de rosa, que apanhou e balbuciou na boca para tentar não deixar a língua enrolar. Uma tragédia que marca eternamente a vida dos três heróis do mar e de suas famílias, que desde as 6h00 dessa quinta-feira, se prostram de joelhos pedindo a Deus que trouxesse de volta os pescadores.

No hospital, um misto de emoções, dor, pela perda dos amigos, lágrimas, das lembranças dos momentos mais difíceis de suas vidas, abraços nos familiares e agradecimentos a Deus por terem se salvado após mais de 15 horas de medo, insegurança, frio. Uns já não sentiam mais as pernas.

O mestre detalha tudo

Com mais de 20 anos de experiência em pesca, essa tragédia não faz o mestre Marciélio desistir da profissão. Ele contou que, mesmo com o ocorrido volta a navegar ainda. Detalhou os momentos difíceis que passou com os amigos. Sem conseguir definir qual foi o mento pior. “Não sei o que é ‘mais pior’ entre uma coisa e outra. Muito frio, muita dor ver os amigos morrer, tanto tempo trabalhando junto, ver morrendo na sua frente e ouvi-los dizer: ‘não aguento mais, cuida de mim que eu cuido de você’. Chegou um momento que não deu”, chorou o mestre.

Bateu em um objeto

A tripulação estava navegando e de repente a embarcação bateu em um objeto e estourou uma tábua no casco, quando a água começou a entrar. “Tentamos, mas infelizmente não conseguimos. Eu mergulhei para ver o que tinha acontecido, tinha estourado a tábua, começou a entrar água, nós pulamos do barco, ela emborcou, depois subimos novamente, ficamos em cima dela até ela ir de vez, depois ela afundou e nós abandonamos. Ficamos umas duas horas em cima dela. Depois ficamos na água firmando em uma bobina de madeira até 15h00”.

Contou o mestre que entrou em contato pelo rádio da embarcação por volta da 00h00 passando a posição da embarcação. “O socorro chegou três e pouca da tarde, às 14h00 e pouca passou um helicóptero da Marinha, porém, passou muito alto, nós avistamos o mergulhador descer, na corda, mas eles não nos avistaram, procuraram pouco, saíram fora”.

Marcinho disse que dentro da água só pediam a Deus que os salvasse. “A morte pouco a pouco foi levando os nossos amigos. Nós vimos e não podíamos fazer nada, foram morrendo, infelizmente. Eles estavam cansados, provavelmente o primeiro enfartou, os outros dois, o cansaço”.

Macarrão tomou leite de rosa para a língua não enrolar

Outro sobrevivente, ainda muito emocionado falou com a reportagem, Edmilson, que é do Rio de Janeiro e pesca há mais de 30 anos. “Na hora que o barco virou, ia emborcar em cima de mim, eu cai para o lado no convés, mas graças a Deus saí nadando fora dele me segurei em um botijão de gás e subi no casco do barco, depois a bobina saiu, veio uma vaga de mar e me empurrou para fora do barco foi à hora que todos abandonaram o casco do barco, graças a Deus nós nadamos. Eu carreguei a mochila para salvar meus documentos, tinha uns vidros de hidratante, perfumes, o que me ajudou a boiar. Eu tomei leite de rosa para minha língua voltar ao normal e eu ia morrer”.

Preces, muitas orações

“Pedimos a Deus, oramos, os três meninos começaram a se afobar, não podia se afobar era pior, começaram a beber água, eles foram morrendo. O primeiro morreu como aquela cena final do filme Titanic, foi para o fundo devagarzinho, uma tristeza do caramba, depois morreu o outro e depois morreu o outro, que tristeza, daí pra frente eu só pensava em Deus enviar uma embarcação para tirar nós daquele sofrimento. Minhas pernas não tinham mais força, meu deu muita câimbra, já estava morrendo. Meu amigo me incentivou dizendo que eu tinha coseguido ficar até àquela hora. Na hora que veio o navio passou direto, o rebocador passou direto, o helicóptero, todos passaram, eu disse: agora não tem jeito, só Deus mesmo. Depois veio a embarcação, o rapaz chamado Bidi e nos salvou”, contou Macarrão.

Bidi o salvador

A experiência do mestre Bidi, da embarcação Lavínia II de Itaipava contou muito no socorro aos tripulantes. “Ele foi à posição que estava o barco virado, tirou a maré, mediu e veio em cima da gente certinho. Eu não conseguia nem subir no barco. Eles me puxaram, me colocaram no convés, trocaram a minha roupa, eu só pensava nos meus amigos que morreram”.

A calmaria seria a salvação dos pescadores que morreram, por isso teve um momento que Macarrão preferiu se afastar um pouco dos meninos que estavam muito afobados. “Quando eu via meus amigos ficarem no desespero, eu me afastava, uma pessoa na ânsia leva outra pessoa junta, eu me afastava com minha cabeça na mochila e deixava a bobina com eles sozinhos. Não podia se afobar”.

O terceiro que morreu, segundo Macarrão, ele o aconselhou a não se desesperar. “Eu disse, cara se orienta fica quietinho, ele queria ficar em cima da bobina, na hora que a bobina virou ele foi para o fundo, quando ele foi para o fundo, ao invés de nadar com a gente, ele nadou para fora, ele foi nadando de cabeça dentro d água, depois não aguentou. Só vi quando ele foi para o fundo”.

Vira as costas para o mar e fala menos

O desespero acabou contribuindo para a morte dos pescadores mais jovens, além da pouca experiência com a profissão, somada a condição física, segundo os pescadores mais velhos da embarcação.

Com mais experiência na pesca, Jaciélio relatou que tentou orientar os meninos. Preferiu ficar nadando em volta da embarcação que naufragava aos poucos para deixar os amigos em cima da bobina. Com uma bolsa vermelha nadava em volta deles, “se ficassem todos em cima, o peso faria com que naufragasse mais rápido. Eu nadava em volta deles e eles me gritando, eu rodando falava: controla gente, vira as costas para o mar e fala menos, não bebam água. Foi indo, foi indo, eu vi quando meu primo enfartou, tadinho, fraquinho, magrinho, não aguentou. Ele pedia a Deus, mas dizia, minhas pernas não dar mais para bater, eu dizia, bata as pernas para aquecer um pouco. A água muita raça de gelada”.

O que ajudou a salvar a tripulação foram as baleias nadando em volta deles, “a nossa salvação foram elas que evitaram o cação chegar perto de nós”.

Destemido, Jaciele avistou um rebocador rodando em volta. “Eu disse, vou nadar para cima daquele rebocador, se alguém aparecer vocês falam, que eu estou pra baixo e seja o que Deus quiser. Nadei, nadei, nadei, quando cheguei perto, ele saiu, foi embora. Eu falei: meu Deus para eu achar a galera agora ficou feio. Eu vim nadando, aí achei um biscoito recheado, todo molhado, eu abri assim mesmo, fui obrigado a comer, espremi e comi, estava 100% salgado e fui nadando devagarzinho, quando eu voltei só estavam dois na bobina, os outros não aguentaram mais. Já era na parte da tarde”.

Coletes

Os tripulantes contam que a embarcação possuía coletes salva vidas, mas não deu tempo de pegá-los, o barco virou, era de madrugada, estava muito escuro e frio, tudo dificultou o socorro.

No momento do naufrágio, o mestre pediu socorro pelo rádio, mas, de madrugada, nem todas as embarcações estão com o rádio ligado, uma delas, acionou a rádio Costeira às 6h00, eles haviam sofrido o acidente poucos minutos depois da 00h00 do dia 25. Ficaram a deriva por mais de 15h00, a bobina os salvou.

Causas

A Marinha do Brasil, por meio do Comando do 1° Distrito Naval, informa que a embarcação pesqueira “Lavínia II” resgatou, na tarde de ontem (26), três dos seis pescadores que estavam na embarcação “Kairós”, naufragada na madrugada de ontem, a 80 quilômetros
da costa de São João da Barra (ES). Os tripulantes resgatados desembarcaram, hoje (27) pela manhã, no Município de Itaipava (ES) e foram encaminhados para o Hospital Menino Jesus, onde foram atendidos e, em seguida, receberam alta.

A Operação de Busca e Salvamento aos demais tripulantes desaparecidos continua sendo realizada pelo Navio-Patrulha “Macaé”, com o apoio de uma aeronave C-130 Hércules pertencente à Força Aérea Brasileira, além da embarcação offshore “Elizabeth C”.
As causas do acidente e as responsabilidades serão apuradas em Procedimento Administrativo instaurado pela Marinha do Brasil.

Segundo a Marinha do Brasil, a embarcação “Lavínia II” resgatou os três sobreviventes. Nesta quarta-feira (26), uma operação de busca e salvamento foi montada, mobilizando o Navio-Patrulha “Macaé”, sediado no Rio de Janeiro, uma lancha com equipe de salvamento da AgSJBarra e um helicóptero da força aeronaval, além embarcações pesqueiras que se encontravam na área.

As buscas pelos três pescadores desaparecidos continuam, segundo a Marinha. Eles moravam na localidade do Gomes, interior de Itapemirim. As causas do acidente e as responsabilidades serão apuradas em Procedimento Administrativo instaurado pela Marinha do Brasil.

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1 comentário

  • Rangel Moreira disse:

    Porque não tinha a balsa inflavel se ela é obrigatoria !!?
    Os coletes deveriam ser de facil aceso, sinalizadores luminosos também obrigatorios em qualquer embarcação !!
    Me parece clara a Negligência nesse caso ..eles não tinham nem o minimo de recursos par se salvarem.
    O mestre e o dono da embarcação devem ser responsabilizados !!
    Justiça

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