Crônica • As cenas…

Até aos 8 anos, tudo era lindo, tudo era mágico, tudo era puro, era tudo muito especial. O terreiro, a horta, a cadeia, a cacimba, as latas d’ água, a talha, o cantil, as marmitas, o brejo magro, a privada, a porteira, a escola anexa à casa.

Brincar de professora, numa sala de aula praticamente vazia. Subindo no banco enorme de pau com um pedaço de resto de giz nas mãos e ensinar as pequenas primas as vogais.

Era por demais maravilhoso vê-las sentadas naquelas carteiras antigas, aprendendo as vogais por uma pequena professorinha, num canto de uma roça esquecida.

A horta lá daquela casa era muito verde. Tudo que precisávamos para o almoço e jantar estava plantado lá. Couve, taioba, repolho, tomate, pimentão, chicória e almeirão…

Gostava muito de molhar a horta daquela casa, corria ainda cedo para beber a água do sereno nas folhas enormes de taioba. Até, o maldito dia em que meu irmão Xuxula resolveu acordar mais cedo e fazer xixi nas folhas das taiobas.

Era muito bom, encher a caixa de papelão e sair de bicicleta Monark verde de garupa e ir até a província vender de casa em casa os molhos de salsa e cebolinha, a couve e a alface verdinha.

Era bom demais ir ao laticínio na carroça levar o leite depois de tirado. Encontrar Jaciguai (in memória, Edinho), depois brincar e brincar no meio do pomar na casa de Dona Tereza. Ah, Mirela que maldade fizeram com você. Ainda sinto o cheiro da farofa de ovo que sua avó fazia…

O que confesso que não gostava muito era passar óleo de peroba nos bancos da igreja e encerar aquelas cerâmicas miudinhas na mão e depois dar brilho no pé. Minha mãe era zeladora.

Meu pai era polivalente: plantava roças de feijão, arroz, milho mandioca e amendoim, tudo a meia com o dono da terra. Essa última ele fazia questão nos fazer cantar enquanto plantava para não comer as sementes.

Ele caçava e pescava, tomava conta de uma pequena fazenda, tirava leite e ainda era um tipo carcereiro. Ele trabalhava intensamente todos os dias e aos finais de semana me levava para ver as partidas de futebol, ele gostava de jogar biscas comigo. Meu pai sempre foi o meu maior exemplo de herói.

Depois nos mudamos para a cidade, a pequena e velha Batalha. Lá a vida era mais difícil, não tinha a fartura da horta, nem o leite fresco tirado na hora. Não tinha tatu, nem lagarto no prato. Ganhamos uma casa popular.

Era mais difícil a vida, eu era muito pequena ainda. Tinha de trabalhar.

Havia uma casa onde eu ia cuidar das crianças e o dono, um velho nojento insistia em me cortejar, gostava de passar as mãos grandes e imundas dele nas minhas partes mais reservadas. Velho porco, aos domingos ele ia a igreja com a família exemplar. Pregava e tudo, dava dízimo, gostava de humilhar a esposa, em certas épocas queria bater. Mas aquela família exemplar, nunca ninguém iria imaginar seus segredos e covardias silenciosas. Eu fugi de lá, nunca contei nada a ninguém, tive medo.

Fui trabalhar em outra casa com 14 anos, talvez, depois do horário da padaria que eu trabalhava por tantos anos em troca de material escolar. Eu queria ser escritora. Precisava aprender escrever….

Naquela casa linda, uma pequena menina com menos da minha idade que eu tomava conta cuspia catarro na parede e me fazia limpar. Tudo calada, humilhada, eu fazia sem questionar.

Mas, era aquela casa, que hoje sobram as ruínas que eu guardo as melhores lembranças, o brejo magro que a gente lavava as vasilhas, a cacimba atrás da cadeia, onde minha mãe lavava as intermináveis trouxas de roupa para dona Tereza, batendo nas pedras e deixando de molho na bacia de alumínio. Aquela cacimba de onde a gente pegava água e levava na cabeça para encher a talha. Dentro dela criamos um morobá…  Foi no terreiro daquela casa que minha irmã arrumou um galho de eucalipto e pôs-me a ensinar a fazer crochê. Eu jamais quis aprender.

Foi lá que eu cortei um pé de mamão instigada por Branca e levei uma coça de vara de goiaba quando os frutos caíram no chão. Foi lá, que Branca paquerava Juarez, um rapaz tímido.

Foi lá, naquela casa que havia no pé do morro uma porteira e eu corria para abri-la para o senhor no seu cavalo branco passar e ganhar dele duas moedas. Seu Ilário, disse minha mãe… Saia correndo descalça cantarolando.

Foi lá naquela casa que minha mãe fazia remendos em roupas e eu adorava quando minhas tias levavam as primas para eu ensinar o B. A. BÁ.

Lá naquela casa, que hoje só tem as ruínas que havia uma privada no morro, perto da casa de Dona Samila.

Naquela casa, sem energia, sem geladeira e televisão, com talha e cantil, com bancos de pau que eu era feliz e não sabia.

Uma vez a cada três meses eu acho, a gente ia à casa de tia Fiota fazer farinha. Minha mãe, tia Ofelha e tia Fiota na farinheira, fazendo biju e tapioca e a gente correndo no meio do pomar brincando de pique bandeira e amarelinha no terreiro.

Foi lá, naquela casa, que tinha um pé de maracujá e a gente subia e pegava cada pequeno azedo para chupar, até o caroço. E o pé de ingá. Nossa, naquela casa, eu passei os melhores anos da minha vida, foi lá que eu conheci um delegado muito ruim, que se apossou das terras da minha vó e suas irmãs, foi lá que minha mãe lavava as roupas da casa do delegado. Foi lá que minha fazia a merenda da pequena escola. Foi lá, no terreiro que os perus, patos e galinhas foram criados para nos alimentar. Foi lá naquele córrego que colocamos uma grade de Peps para gelar e o ladrão a levou sem ao menos se importar. Foi lá, que a gente era feliz e não sabia…

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